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CHULA VIRADA

A chula é um género musical e coreográfico português, dançado a pares, por vezes com canto ao desafio. Encontra-se bastante difundida e enraizada no quotidiano do noroeste português, sendo nalgumas regiões dançada durante várias horas. Segundo o pesquisador José Alberto Sardinha, a dança deverá descender do passacalhe ibérico. O mesmo autor afirma que a razão pela qual em tempos o termo chegou a albergar uma grande variedade de tipos coreográficos e musicais se deve ao facto de que, inicialmente, era prática corrente dar o nome de chula às danças grosseiras e próprias de gente baixa, de gente da ralé (gente chula).

Efectivamente, existem inúmeras variantes regionais da chula. As designações das variantes podem remeter para uma área geográfica, por exemplo chula de Amarante ou chula duriense; podem remeter para a sua antiguidade, por exemplo chula velha ou chula nova; e podem aludir a aspectos da prática performativa da coreografia, como é o caso da chula de paus, da chula rasgada ou ainda desta chula virada sobre a qual escolhemos trabalhar, e cuja partitura se encontra na pág. 680 do vasto Cancioneiro do Alto Douro (Altino Moreira Cardoso, 2006).

SERPA E PAVIA (VIRA DE QUATRO)

Embora alguns dirigentes e académicos do Estado Novo tenham insistido em classificar o vira como uma dança característica do Minho, as inúmeras recolhas efectuadas ao longo do século XX e XXI revelam que, na realidade, a dança é praticada em todo o país. Todos os viras têm um padrão rítmico comum - o tempo binário ou quaternário com subdivisão a três tempos – mas o seu carácter pode variar bastante. Existem viras saltados e rápidos, arrastados e molejados, valseados e moderados. O passo padrão pode ser rodado, semi-rodado, valseado, deslizado, saltado, batido... e geralmente dança-se com os membros superiores acima da cabeça. As designações das variantes do vira podem dizer respeito a vários critérios, como por exemplo as suas características musicais ou coreográficas (é o caso do vira valseado, do vira ao desafio, ou do vira das palmas). Podem identificar a região (vira do Minho, vira serrano, vira de Frielas); o seu grau de ancestralidade (vira velho, vira novo); ou ainda a sua organização espacial (vira de roda, vira do meio, vira de quatro). E alguns têm nomes específicos como a gota, a rosinha, a tirana, a saias ou o toma lá dá cá.

A melodia desta canção, que aqui propomos em passo de vira, resulta na realidade da combinação de duas modas alentejanas cujas transcrições se podem encontrar no cancioneiro Cantares do Povo Português. Publicado em 1937 por Rodney Gallop, este livro reúne transcrições de várias recolhas feitas por este etnógrafo e diplomata inglês durante a sua passagem por Portugal, entre 1931 e 1933. A primeira moda, recolhida em Serpa (pág. 47), é ainda hoje a mais difundida das duas, sendo habitualmente designada pelo seu primeiro verso “Eu hei de ir ao Algarve”. A segunda, recolhida em Pavia (pág. 57), e composta por duas breves melodias, surge nesse cancioneiro sem indicação de título. A combinação destas três melodias distintas no nosso arranjo sugere uma coreografia dividida em três partes iguais, podendo ser interpretada como vira de quatro.

IND’AGORA AQUI CHEGUEI (VALSA A 3 TEMPOS & VALSA A 5 TEMPOS)

No final do século XVIII, a valsa partiu da Áustria e da Alemanha numa longa diáspora pelo mundo fora. Nalguns países permaneceu fiel às suas raízes, noutros aculturou-se ao gosto local. Hoje é uma das danças mais populares do planeta e, certamente, uma das que mais gente sabe dançar.

 

A letra e melodia desta canção foram encontradas na pág. 335 do Cancioneiro Musical de Penha Garcia (Flávio Pinho, 2011). Trata-se de uma recolha feita por Flávio Pinho, em 1991, nesta aldeia do município de Idanha-a-Nova, Beira Baixa. Foi executada em canto solo, sem acompanhamento instrumental, por Mari’Carrinho, mas uma informante alega que em tempos era tocada com adufe: “Oh, com adufe era até muito linda! Era, pois!”. Nesse cancioneiro a melodia é apresentada em compasso ternário simples, mas neste arranjo surge também com o balanço de uma valsa a cinco tempos.

MODA A DOIS PASSOS

A moda a dois passos, também conhecida por moda de dois passos ou valsa de dois passos, é uma dança de par agarrado muito popular na Estremadura, Ribatejo, Alentejo, Beira Baixa e Beira Litoral. Segundo José Alberto Sardinha, investigador de música de tradição oral, a moda a dois passos é na verdade uma mazurca, uma das danças europeias oitocentistas que o povo português importou e adaptou ao seu temperamento. Em Portugal a dança ganhou este nome pelo facto de o seu desenho coreográfico começar com dois passos para fora e outros dois para dentro da roda.

A melodia da qual partiu este arranjo, na qual se sente inequivocamente um balanço de mazurca, foi encontrada na pág. 170 do livro Músicas e Danças Tradicionais do Ribatejo (Beltino Coelho Martins, 1997), com a indicação de ter sido recolhida no Bairro de Santarém.

CORRIDINHO DO ALTO DOURO

A origem do corridinho tem gerado alguma controvérsia entre os pesquisadores. José Alberto Sardinha, conceituado pesquisador de música de tradição oral, defende que esta dança a pares em tempo binário descende da scottische, uma forma coreográfica que em Portugal adoptou a designação de chotiça. Segundo este autor, o termo corridinho deriva de uma forma coreográfica específica a que se dava o nome de chotiça corrida. Esta dança, executada em roda de pares agarrados, incluía passagens muito rápidas, em galope, durante as quais os pares tentavam alcançar o par que os antecedia, o que causava frequentemente muitas quedas, atropelos e reboliço.

O corridinho não é uma dança exclusiva do Algarve, tal como o fandango não é uma dança exclusiva do Ribatejo, nem o vira é uma dança exclusiva do Minho. (Nem tão pouco é a dança mais praticada nesta região, sendo esse lugar ocupado pelo baile de roda.) Estereótipos como estes foram alimentados ao longo do século XX, não só pelo Estado Novo, mas sobretudo pela indústria do turismo e pelos dirigentes dos ranchos folclóricos. Efectivamente, encontra-se copiosamente documentada a prática do corridinho em províncias como o Alentejo, Ribatejo, Estremadura e Beiras. Aliás, o arranjo que apresentamos neste disco combina dois corridinhos do norte do país, cujas partituras encontrámos no já mencionado Cancioneiro do Alto Douro (págs. 684-6).

ENLEIO

O enleio é um dos bailes de roda mais disseminados e mais praticados em todo o país. Habitualmente, num baile de roda, os dançadores formam um círculo, intercalando-se os do sexo masculino com os do feminino. Na sua fórmula mais difundida, todos seguem de mão dada, virados para dentro do círculo, enquanto a roda evolui no sentido contrário aos ponteiros do relógio. A simplicidade do baile de roda terá contribuído para que se tornasse num dos tipos coreográficos mais comuns em todo o mundo. É a mais primitiva forma de dança colectiva e constituiu a matriz para um número incalculável de danças.

 

A melodia deste enleio encontra-se na pág. 801 do Cancioneiro de Entre Mar e Serra da Alta Estremadura (José Ribeiro de Sousa, 2003). A letra é uma compilação dos versos mais interessantes que fomos encontrando nos vários enleios com que nos fomos cruzando, em gravações e noutros cancioneiros. No entanto, vale a pena conhecer a letra que consta nessa mesma página do cancioneiro, com a qual só mais tarde viemos a ter contacto.

FANDANGO

Dois fandangueiros frente a frente, em traje ribatejano, calças apertadas, sapatos de esporas, e polegares nas cavas ou nos bolsos do colete. Esta é a iconografia estereotípica e actualmente prevalecente do fandango. Segundo o pesquisador José Alberto Sardinha, na segunda metade do século XX, os ranchos folclóricos e o espírito bairrista dos ribatejanos começaram a propagar a ideia errónea de que o fandango é uma dança exclusiva do Ribatejo. Efectivamente, a sua disseminação geográfica por todo o território nacional encontra-se perfeitamente documentada. Aliás, as primeiras referências a esta dança em Portugal, de há quase três séculos atrás, nem sequer são do Ribatejo. Segundo o mesmo pesquisador, o fandango é proveniente de Espanha, tendo sido introduzido em Portugal no séc. XVIII. De acordo com os relatos dessa época, na sua fórmula coreográfica original, o fandango era uma dança a pares, bailada frente a frente por um homem e uma mulher, que alternadamente se desafiavam em passo de sapateado. Era uma dança de forte carácter sensual, de pura sedução e exibicionismo entre os dois sexos. Entretanto, a partir do século XIX, a dança começou também a ser cultivada pelos homens como forma de exibicionismo e despique, nas tabernas ou no final dos bailes populares. Pelo facto do passo de sapateado exigir dos bailadores bastante destreza e agilidade, nesta nova prática, hoje em dia a mais difundida pelos meios de comunicação, o fandango perdeu grande parte da sua função de baile galante para se converter num jogo de destreza, desafio e afirmação masculina.

Apesar de encontrarmos no cancioneiro tradicional português várias dezenas de melodias em ritmo e estrutura de fandango, inconcebivelmente, quase todos os ranchos folclóricos tocam a mesma melodia, a qual parece ter monopolizado a própria definição de fandango seja nos terreiros, nos palcos ou nas televisões do nosso país. O fandango que aqui propomos resulta da combinação de duas melodias neste estilo extraídas da pág. 142 do livro Músicas e Danças Tradicionais do Ribatejo (Beltino Coelho Martins, 1997), a primeira recolhida em Alcanena, e a segunda em Vale da Serra, Torres Novas.

MAZURCA D’ÁGUEDA (HANTER DRO)

A melodia da primeira parte deste arranjo foi encontrada na pág. 399 do Cancioneiro de Águeda (Amílcar Morais, 2003), com a indicação de ter sido recolhida em Bolfiar. (A melodia da segunda parte foi composta por nós.) Apesar da partitura estar no topo dessa página identificada como sendo uma mazurca, à medida que as ideias foram surgindo, o nosso arranjo foi-se afastando naturalmente do espírito da mazurca e aproximando-se do balanço da dança colectiva bretã hanter dro.

TOMA LÁ DÁ CÁ (VIRA DA NAZARÉ)

O toma lá dá cá, que pertence, como já foi referido, à vasta família dos viras, caracteriza-se por uma dinâmica arrastada e pouco acentuada, durante a qual os braços acompanham o movimento natural do corpo ao dançar, subindo e descendo, talvez em alusão às ondas do mar.

Encontrámos a melodia deste toma lá dá cá na pág. 214 do Cancioneiro do Concelho de Águeda (Amílcar Morais, 2003), com a anotação de que fora recolhida algures na década de 1970, em Fermentelos, no concelho de Oliveira do Bairro. Sendo um género coreográfico característico da Estremadura Litoral, sobretudo da região da Nazaré, em vez de adoptar a letra registada nessa recolha, optámos por atribuir a este toma lá dá cá um conjunto de versos ligados à temática da faina marítima. Alguns são da nossa autoria, outros foram extraídos e adaptados do Cancioneiro Popular Português de José Leite de Vasconcelos.

O nosso arranjo começa com alguns segundos de um Leva-Leva, um canto de trabalho outrora entoado por pescadores durante o trabalho de alar as redes. Foi recolhido por Michel Giacometti no Algarve, em 1961.

FONTES

Enciclopédia das Tradições Populares (José Alberto Sardinha, Terramater.pt)
Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX (Salwa Castelo Branco, Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2010)

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ENLEIO

Ó enleio que te enleaste

No mais alto acipreste

Ó enleio que te enleaste

No mais alto acipreste

 

Eu quis me’ enlear contigo

Ó enleio, tu não quiseste

Eu quis me’ enlear contigo

Ó enleio, tu não quiseste

 

Quando eu quis tu não quiseste

Querias ser mais do que eu

Quando eu quis tu não quiseste

Querias ser mais do que eu

 

Agora que tu já queres

Agora não quero eu

Agora que tu já queres

Agora não quero eu

Raparigas cantai todas

Rapazes cantai também

Raparigas cantai todas

Rapazes cantai também

 

O cantar e o dançar

Não fica mal a ninguém

O cantar e o dançar

Não fica mal a ninguém

TOMA LÁ DÁ CÁ

Já lá vai pelo mar fora

Quem a mim tirou o chapéu

Deus o leve, mas Deus o traga

Àquele meu anjinho do céu

 

Toma lá, dá cá

Dá cá, toma lá

Amor como o meu

Já não há não há

 

Toma lá, dá cá

Não digas que não

Dá cá, toma lá

O meu coração!

 

Ó mar, colchão dos navios

Ai, ó cama de marinheiro

Por que ondas vais embalando

Esse meu amor verdadeiro

 

Toma lá, dá cá

Dá cá, toma lá

Amor como o meu

Já não há não há

 

Toma lá, dá cá

Não digas que não

Dá cá, toma lá

O meu coração!

 

Ó mar não sejas tão bravo

Porque andas tu furioso

Ai ó mar, se foras casado, 

Tu serias mais amoroso

 

Toma lá, dá cá

Dá cá, toma lá

Amor como o meu

Já não há não há

 

Toma lá, dá cá

Não digas que não

Dá cá, toma lá

O meu coração!

IND’ AGORA AQUI CHEGUEI

Ind’ àgora àqui cheguei

Ind’ àgora àqui cheguei 

Logo começo a cantari

Logo começo a cantari

 

Inda não pidi licença

Inda não pidi licença

Não sei si ma querem dari

Ai não sei si ma querem dari

 

ió-lari-lari-lólela

aió-lari-lari-lóló

 

Não mi ponh’ ò pé na saia

Não mi ponh’ ò pé na saia 

Diga di longe’ o qui queri

Ai diga di longe’ o qui queri

 

Você não perdi qu’ é homem

Você não perdi qu’ é homem 

Nem perco eu qui sou mulheri

Ai nem perco eu qui sou mulheri

 

ió-lari-lari-lólela

aió-lari-lari-lóló

 

Tu perdida e eu perdido 

Tu perdido e eu perdida

Dois perdidos qui farão

Ai dois perdidos qui farão

 

Ajuntáramos os dois

Ajuntáramos os dois 

Acaba-s’ a perdição

Ai acaba-s’ a perdição

 

ió-lari-lari-lólela

aió-lari-lari-lóló

SERPA E PAVIA (HEI DE IR PARA O ALGARVE)

Eu hei de ir ao Algarve, sim, sim. 

Hei de lá estar oito dias, não, não. 

Hei de cantar e bailar, sim, sim. 

Com as moças algarvias, não, não

 

Nasce o linho dentro de água, 

Cercado de rosmaninho. 

Se o meu amor me falseia, 

Eu ficarei no caminho. 

 

Gira que gira, fiando linho

Fuso de lira, gira mansinho

 

Está uma roda parada, sim, sim

À falta d’ haver quem dance, não, não

Agora começo eu, sim, sim

Sig’ ò baile pra diante em Olhão

 

Nasce o linho dentro de água, 

Cercado de rosmaninho. 

Se o meu amor me falseia, 

Eu ficarei no caminho.

Gira que gira, fiando linho

Fuso de lira, gira mansinho

 

[instrumental]

 

Solteirinha não te cases, sim, sim

Logra-te da boa vida, não, não

Qu’ eu bem sei de uma casada, sim, sim

Que chora de’ arrependida, não, não

 

Nasce o linho dentro de água, 

Cercado de rosmaninho. 

Se o meu amor me falseia, 

Eu ficarei no caminho. 

 

Gira que gira, fiando linho

Fuso de lira, gira mansinho

chula virada
serpa e pavia
ind'agora aqui cheguei
moda a doi passos
corridinho do alto duro
enleio
fandango
mazurca d'águeda
toma lá dá cá
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